domingo, 30 de dezembro de 2007

Eis o nosso manual de instrução

O que parecia ficção virou ciência. O genoma pessoal é fato e chegou para revolucionar a lógica médica

James D. Watson*

Há mais de 50 anos, Francis Crick e eu trabalhamos juntos numa estrutura de DNA de dupla hélice. Naquela época, não havia como determinar a seqüência de bases de uma molécula de DNA, que, nós sabíamos, devia conter um código genético. Portanto, a idéia de que os indivíduos poderiam ter, de forma precisa e econômica, seu próprio DNA seqüenciado era pura ficção científica. Francis, mais à vontade que eu nessa modalidade ficcional, talvez tenha até especulado um pouco a respeito. Mas eu nunca poderia ter previsto que algum dia veria minha própria seqüência de DNA.

Revelar a estrutura do DNA abriu novos campos de descoberta, levando, em 1989, ao Projeto do Genoma Humano - um esforço internacional que decifrou os conteúdos químicos do gene humano. Essa descoberta fundamental poderia ser traduzida na melhoria da saúde das pessoas. Em 2003, pela primeira vez, tivemos uma seqüência quase completa do genoma humano. Mas, como levou 13 anos e custou US$ 3 bilhões para se conseguir este objetivo, a “seqüência do genoma pessoal” seguiu parecendo ficção científica.

Essa ficção se transformou em ciência de fato em maio de 2007, quando cientistas do Centro de Seqüenciamento do Genoma Humano da Baylor College of Medicine, em Houston, me presentearam com uma cópia da minha própria seqüência de genes, todos os 6 bilhões de pares-base lindamente empacotados em dois DVDs. Esse manual de instruções é o que determina minha aparência, personalidade e predisposição para a saúde ou a doença.

A ficção científica se converteu em ciência por meio do desenvolvimento de novas tecnologia que aceleraram o seqüenciamento e, ao mesmo tempo, reduziram seu custo. O seqüenciamento de meu genoma pessoal demorou somente 67 dias e custou US$ 1 milhão. Diante do ritmo de avanço da tecnologia, podemos aguardar um seqüenciamento de genoma de US$ 1 mil num futuro muito próximo. Quando este marco for atingido, talvez todos nós possamos ter DVDs com nossas próprias informações genéticas.

Isso é importante porque meu genoma pessoal, como o de qualquer outra pessoa, contém uma riqueza de dados que não podem ser interpretados isoladamente. Precisamos comparar e contrastar o genoma de, digamos, mil pessoas para ver as variações e padrões que podem ser associados com fatores que contribuem para a saúde ou predispõem à doença.

Por causa do temor de perturbar pessoas jovens com propensões genéticas que podem ou não afetá-las, talvez, a princípio, somente pessoas saudáveis com mais de 80 anos devam ser seqüenciadas. Os mais velhos não seriam inclinados a alterar seus hábitos para se encaixar nos resultados. Vamos seqüenciar pessoas que já viveram a vida e ver o que seus genomas revelam para as próximas gerações.

Se ainda precisamos aprender muito até que possamos interpretar adequadamente nossos genomas, em que me beneficia ser o primeiro genoma seqüenciado? Na realidade já sabemos o suficiente sobre os genes e a má saúde para oferecer informações valiosas. Os cientistas de Houston analisaram variantes dos meus genes associadas com o câncer, incluindo o câncer de mama. Minha irmã teve câncer de mama quando tinha 50 anos. Se eu tivesse filhas, que teriam 50% de risco de terem esse gene, eu as alertaria para que fizessem exames.

Meu genoma pessoal também revela que estou predisposto a degeneração macular. Disseram-me que aos 50 anos você começa a mostrar sinais dessa doença. Estou chegando aos 80 e com uma boa visão. Se tivesse sabido dessa variação específica quando tinha 20 - e se fosse hipocondríaco -, poderia ter começado a usar óculos escuros ou viver numa caverna, como ações preventivas. Mesmo assim não teria uma forma de saber se meus olhos iriam de fato se deteriorar.

O seqüenciamento individual do genoma humano resultará na possibilidade de se adotar terapias adaptadas especialmente a um indivíduo. Nem todo mundo reage da mesma forma a um medicamento - o que é eficaz para uma pessoa pode apresentar graves efeitos colaterais para outra. Sabendo as seqüências de genoma, seremos capazes de prever como as pessoas reagirão a um medicamento, prescrevendo-o somente aos que dele se beneficiarão.

Neste mundo de genética personalizada talvez encontremos uma nova abordagem para a medicina. Hoje perguntamos “por que estou doente?” em vez de “por que não fico doente?” O que protege os portadores da síndrome de Down contra o câncer de mama, mas aumenta a ocorrência de leucemia neles? A análise da seqüência de DNA do cromossomo 21 talvez identifique os genes que protegem contra o câncer de mama e os que promovem a leucemia. Em ambos os casos esse conhecimento pode ser usado para desenvolver terapias.

Ser o primeiro realmente faz diferença. Mas isso não a meu respeito. Uma era inteiramente nova está começando. Minha esperança é que o compartilhamento da minha seqüência de genoma venha moldar o discurso e a descoberta biomédicos até que seja atingido o próximo marco na genética. Muita gente considera quase como um ato de fé você jogar com as cartas que lhe couberam. Mas alguns futuros são inaceitáveis - como o autismo, que pode ser um inferno implacável tanto para o autista como para as pessoas que o amam e cuidam dele. Ou a doença de Huntington, uma perturbação neurológica devastadora, na qual os filhos de um pai afligido pela doença tem 50% de risco de herdá-la. Uma vez que os médicos consigam interpretar um código genético individual, as técnicas de medicina genética evoluirão para impedir que uma praga caia sobre gerações. Talvez daqui a 50 anos saberemos como acabar de vez com a doença de Huntington.

Seu genoma pessoal não é seu destino. A vida é complexa demais para uma leitura absoluta e determinista. O seqüenciamento do DNA nos permite talvez administrar nossa saúde por revelar probabilidades e não certezas. Sua composição genética e sua experiência se afetam mutuamente, continuamente. Mas se você conhecer sua natureza por meio de seu genoma pessoal, é muito mais fácil administrar sua alimentação. A diabete, por exemplo, é originária tanto da natureza como da nutrição - seus genes e hábitos alimentares. Logo, poderemos prever melhor quem está predisposto a diabete e prescrever medicamentos de acordo.

Surgem questões étnicas sobre quanto de informação pessoal você deve compartilhar e com quem. A seqüência do meu genoma está postada na internet para todos verem, no endereço www.jimwatsonsequence.cashl.edu. Não vi motivos para manter em segredo minha seqüência, a não ser pelo elo com o mal de Alzheimer. Minha avó morreu de Alzheimer aos 84 anos. Portanto, com base nas probabilidades, imaginei que tenha uma probabilidade em quatro de trazer comigo a cópia errada do gene. Uma vez que ainda não há muito a fazer, em termos terapêuticos, para prevenir ou tratar o Alzheimer, tomei a decisão pessoal de não querer saber se corro risco ou não.

A pergunta natural é como seu componente genético afeta suas relações sociais. Se você estiver para se casar e houver alguém da sua família que morreu de uma doença de alto risco geneticamente enraizada, como fibrose cística, será que você vai querer saber se sua futura esposa tem a doença nos seus antecedentes? Se vocês dois souberem que têm esta doença nas respectiva famílias então isso aumentaria a probabilidade de seus filhos sofrerem do mesmo mal. Em sociedades nas quais os casamentos são arranjados, será que você exigiria uma comparação entre os genomas antes de compartilhar sua vida e seu destino? A capacidade de executar prontamente um seqüenciamento de DNA individual tem potencial para mudar a maneira como pensamos sobre relações sociais e como a estrutura social pode evoluir no futuro.

Acredito que os cônjuges não serão obrigados a pedir permissão ao par para ter seu DNA seqüenciado. Será que suas perspectivas de emprego serão comprometidas se o empregador tiver acesso a sua seqüência, com seu currículo? As pessoas têm me perguntado se, ao revelar minha seqüência de DNA, posso ter dado indícios das seqüências de meus filhos. Será que eu deveria ter pedido a permissão deles? Não os vi sofrendo de nenhum malefício decorrente de minhas probabilidades pessoais. Na qualidade de cientista e pai queria que as informações fossem interpretáveis rapidamente, de forma que possam ser usadas o mais depressa possível.

Minha opinião é que as pessoas devam poder tomar suas decisões éticas. Ditar normas sobre assuntos que são tão pessoais como suas impressões digitais parece fútil e perigoso. Quanto mais soubermos sobre nós mesmos, maior poderá ser nossa sensibilidade em relação aos indivíduos e à sociedade. Imagino uma situação na qual me dizem que tenho um gene capaz de elevar em 20% o risco de eu contrair determinada doença se não desistir de tomar sorvete de chocolate. Nesse caso, como a natureza e a alimentação vêm juntas, prefiro me arriscar e tomar meu sorvete. Se o risco fosse de 80%, então me resignaria a uma vida sem sorvete. De fato, muitas questões éticas desaparecerão se tivermos meios de evitar as conseqüências de um mau destino genético, seja eliminando fatores de risco, ou fazendo terapias.

Obviamente que a sofisticação da tecnologia do seqüenciamento de hoje em dia supera em muito nossa capacidade de compreender o que descobrimos. Ainda sabemos muito pouco sobre os genes e a interação entre eles e o meio ambiente. Natureza versus alimentação é um conceito enormemente complexo. No entanto, estamos mais perto do que nunca de transpor o limiar para decifrar as estruturas profundas da saúde. Queremos menos casos de câncer, menos doenças mentais, menos pessoas morrendo prematuramente de falência cardíaca. Sabendo mais sobre a natureza das pessoas podemos incentivar seus pontos fortes e desculpar suas fraquezas. Minha opinião é que, por meio do seqüenciamento do DNA individual, teremos um mundo mais saudável e compassivo daqui a 50 anos, e o genoma pessoal, meu e de incontáveis outros, vai nos ajudar a chegar lá.

Minha motivação em avançar na pesquisa genética tem um componente pessoal. Em 1986, quando as propostas do Projeto do Genoma Humano estavam sendo discutidas, nosso filho mais velho, Rufus, foi hospitalizado com um diagnóstico de esquizofrenia. Então, como agora, não sabíamos quase nada sobre esquizofrenia no nível molecular. Mas a mim pareceu uma tarefa inútil entender a esquizofrenia, ou qualquer outra perturbação mental complexa, a não ser que conhecêssemos a seqüência completa do genoma humano. Minha esperança então, como agora, foi que a pesquisa sobre o genoma pudesse ajudar Rufus e outros como ele.

Ainda não chegamos lá, mas estou trabalhando arduamente para me certificar de que logo seremos capazes de fazer alguma coisa. Para mim e para vocês, a promessa da seqüência individual do genoma humano deixou de ser algo que está no domínio da ficção científica.


*James D. Watson é um dos pioneiros no estudo da genética humana. Durante quase 40 anos comandou o Cold Spring Harbor Laboratory, em Nova York. Em 1953, ele e Francis Crick identificaram a estrutura do DNA. Foram laureados com o Prêmio Nobel de Medicina em 1962. É autor, entre outros, do recém-lançado Avoiding Boring People: Lessons from a Life in Science


O que parecia ficção virou ciência. O genoma pessoal é fato e chegou para revolucionar a lógica médica

James D. Watson*

Há mais de 50 anos, Francis Crick e eu trabalhamos juntos numa estrutura de DNA de dupla hélice. Naquela época, não havia como determinar a seqüência de bases de uma molécula de DNA, que, nós sabíamos, devia conter um código genético. Portanto, a idéia de que os indivíduos poderiam ter, de forma precisa e econômica, seu próprio DNA seqüenciado era pura ficção científica. Francis, mais à vontade que eu nessa modalidade ficcional, talvez tenha até especulado um pouco a respeito. Mas eu nunca poderia ter previsto que algum dia veria minha própria seqüência de DNA.

Revelar a estrutura do DNA abriu novos campos de descoberta, levando, em 1989, ao Projeto do Genoma Humano - um esforço internacional que decifrou os conteúdos químicos do gene humano. Essa descoberta fundamental poderia ser traduzida na melhoria da saúde das pessoas. Em 2003, pela primeira vez, tivemos uma seqüência quase completa do genoma humano. Mas, como levou 13 anos e custou US$ 3 bilhões para se conseguir este objetivo, a “seqüência do genoma pessoal” seguiu parecendo ficção científica.

Essa ficção se transformou em ciência de fato em maio de 2007, quando cientistas do Centro de Seqüenciamento do Genoma Humano da Baylor College of Medicine, em Houston, me presentearam com uma cópia da minha própria seqüência de genes, todos os 6 bilhões de pares-base lindamente empacotados em dois DVDs. Esse manual de instruções é o que determina minha aparência, personalidade e predisposição para a saúde ou a doença.

A ficção científica se converteu em ciência por meio do desenvolvimento de novas tecnologia que aceleraram o seqüenciamento e, ao mesmo tempo, reduziram seu custo. O seqüenciamento de meu genoma pessoal demorou somente 67 dias e custou US$ 1 milhão. Diante do ritmo de avanço da tecnologia, podemos aguardar um seqüenciamento de genoma de US$ 1 mil num futuro muito próximo. Quando este marco for atingido, talvez todos nós possamos ter DVDs com nossas próprias informações genéticas.

Isso é importante porque meu genoma pessoal, como o de qualquer outra pessoa, contém uma riqueza de dados que não podem ser interpretados isoladamente. Precisamos comparar e contrastar o genoma de, digamos, mil pessoas para ver as variações e padrões que podem ser associados com fatores que contribuem para a saúde ou predispõem à doença.

Por causa do temor de perturbar pessoas jovens com propensões genéticas que podem ou não afetá-las, talvez, a princípio, somente pessoas saudáveis com mais de 80 anos devam ser seqüenciadas. Os mais velhos não seriam inclinados a alterar seus hábitos para se encaixar nos resultados. Vamos seqüenciar pessoas que já viveram a vida e ver o que seus genomas revelam para as próximas gerações.

Se ainda precisamos aprender muito até que possamos interpretar adequadamente nossos genomas, em que me beneficia ser o primeiro genoma seqüenciado? Na realidade já sabemos o suficiente sobre os genes e a má saúde para oferecer informações valiosas. Os cientistas de Houston analisaram variantes dos meus genes associadas com o câncer, incluindo o câncer de mama. Minha irmã teve câncer de mama quando tinha 50 anos. Se eu tivesse filhas, que teriam 50% de risco de terem esse gene, eu as alertaria para que fizessem exames.

Meu genoma pessoal também revela que estou predisposto a degeneração macular. Disseram-me que aos 50 anos você começa a mostrar sinais dessa doença. Estou chegando aos 80 e com uma boa visão. Se tivesse sabido dessa variação específica quando tinha 20 - e se fosse hipocondríaco -, poderia ter começado a usar óculos escuros ou viver numa caverna, como ações preventivas. Mesmo assim não teria uma forma de saber se meus olhos iriam de fato se deteriorar.

O seqüenciamento individual do genoma humano resultará na possibilidade de se adotar terapias adaptadas especialmente a um indivíduo. Nem todo mundo reage da mesma forma a um medicamento - o que é eficaz para uma pessoa pode apresentar graves efeitos colaterais para outra. Sabendo as seqüências de genoma, seremos capazes de prever como as pessoas reagirão a um medicamento, prescrevendo-o somente aos que dele se beneficiarão.

Neste mundo de genética personalizada talvez encontremos uma nova abordagem para a medicina. Hoje perguntamos “por que estou doente?” em vez de “por que não fico doente?” O que protege os portadores da síndrome de Down contra o câncer de mama, mas aumenta a ocorrência de leucemia neles? A análise da seqüência de DNA do cromossomo 21 talvez identifique os genes que protegem contra o câncer de mama e os que promovem a leucemia. Em ambos os casos esse conhecimento pode ser usado para desenvolver terapias.

Ser o primeiro realmente faz diferença. Mas isso não a meu respeito. Uma era inteiramente nova está começando. Minha esperança é que o compartilhamento da minha seqüência de genoma venha moldar o discurso e a descoberta biomédicos até que seja atingido o próximo marco na genética. Muita gente considera quase como um ato de fé você jogar com as cartas que lhe couberam. Mas alguns futuros são inaceitáveis - como o autismo, que pode ser um inferno implacável tanto para o autista como para as pessoas que o amam e cuidam dele. Ou a doença de Huntington, uma perturbação neurológica devastadora, na qual os filhos de um pai afligido pela doença tem 50% de risco de herdá-la. Uma vez que os médicos consigam interpretar um código genético individual, as técnicas de medicina genética evoluirão para impedir que uma praga caia sobre gerações. Talvez daqui a 50 anos saberemos como acabar de vez com a doença de Huntington.

Seu genoma pessoal não é seu destino. A vida é complexa demais para uma leitura absoluta e determinista. O seqüenciamento do DNA nos permite talvez administrar nossa saúde por revelar probabilidades e não certezas. Sua composição genética e sua experiência se afetam mutuamente, continuamente. Mas se você conhecer sua natureza por meio de seu genoma pessoal, é muito mais fácil administrar sua alimentação. A diabete, por exemplo, é originária tanto da natureza como da nutrição - seus genes e hábitos alimentares. Logo, poderemos prever melhor quem está predisposto a diabete e prescrever medicamentos de acordo.

Surgem questões étnicas sobre quanto de informação pessoal você deve compartilhar e com quem. A seqüência do meu genoma está postada na internet para todos verem, no endereço www.jimwatsonsequence.cashl.edu. Não vi motivos para manter em segredo minha seqüência, a não ser pelo elo com o mal de Alzheimer. Minha avó morreu de Alzheimer aos 84 anos. Portanto, com base nas probabilidades, imaginei que tenha uma probabilidade em quatro de trazer comigo a cópia errada do gene. Uma vez que ainda não há muito a fazer, em termos terapêuticos, para prevenir ou tratar o Alzheimer, tomei a decisão pessoal de não querer saber se corro risco ou não.

A pergunta natural é como seu componente genético afeta suas relações sociais. Se você estiver para se casar e houver alguém da sua família que morreu de uma doença de alto risco geneticamente enraizada, como fibrose cística, será que você vai querer saber se sua futura esposa tem a doença nos seus antecedentes? Se vocês dois souberem que têm esta doença nas respectiva famílias então isso aumentaria a probabilidade de seus filhos sofrerem do mesmo mal. Em sociedades nas quais os casamentos são arranjados, será que você exigiria uma comparação entre os genomas antes de compartilhar sua vida e seu destino? A capacidade de executar prontamente um seqüenciamento de DNA individual tem potencial para mudar a maneira como pensamos sobre relações sociais e como a estrutura social pode evoluir no futuro.

Acredito que os cônjuges não serão obrigados a pedir permissão ao par para ter seu DNA seqüenciado. Será que suas perspectivas de emprego serão comprometidas se o empregador tiver acesso a sua seqüência, com seu currículo? As pessoas têm me perguntado se, ao revelar minha seqüência de DNA, posso ter dado indícios das seqüências de meus filhos. Será que eu deveria ter pedido a permissão deles? Não os vi sofrendo de nenhum malefício decorrente de minhas probabilidades pessoais. Na qualidade de cientista e pai queria que as informações fossem interpretáveis rapidamente, de forma que possam ser usadas o mais depressa possível.

Minha opinião é que as pessoas devam poder tomar suas decisões éticas. Ditar normas sobre assuntos que são tão pessoais como suas impressões digitais parece fútil e perigoso. Quanto mais soubermos sobre nós mesmos, maior poderá ser nossa sensibilidade em relação aos indivíduos e à sociedade. Imagino uma situação na qual me dizem que tenho um gene capaz de elevar em 20% o risco de eu contrair determinada doença se não desistir de tomar sorvete de chocolate. Nesse caso, como a natureza e a alimentação vêm juntas, prefiro me arriscar e tomar meu sorvete. Se o risco fosse de 80%, então me resignaria a uma vida sem sorvete. De fato, muitas questões éticas desaparecerão se tivermos meios de evitar as conseqüências de um mau destino genético, seja eliminando fatores de risco, ou fazendo terapias.

Obviamente que a sofisticação da tecnologia do seqüenciamento de hoje em dia supera em muito nossa capacidade de compreender o que descobrimos. Ainda sabemos muito pouco sobre os genes e a interação entre eles e o meio ambiente. Natureza versus alimentação é um conceito enormemente complexo. No entanto, estamos mais perto do que nunca de transpor o limiar para decifrar as estruturas profundas da saúde. Queremos menos casos de câncer, menos doenças mentais, menos pessoas morrendo prematuramente de falência cardíaca. Sabendo mais sobre a natureza das pessoas podemos incentivar seus pontos fortes e desculpar suas fraquezas. Minha opinião é que, por meio do seqüenciamento do DNA individual, teremos um mundo mais saudável e compassivo daqui a 50 anos, e o genoma pessoal, meu e de incontáveis outros, vai nos ajudar a chegar lá.

Minha motivação em avançar na pesquisa genética tem um componente pessoal. Em 1986, quando as propostas do Projeto do Genoma Humano estavam sendo discutidas, nosso filho mais velho, Rufus, foi hospitalizado com um diagnóstico de esquizofrenia. Então, como agora, não sabíamos quase nada sobre esquizofrenia no nível molecular. Mas a mim pareceu uma tarefa inútil entender a esquizofrenia, ou qualquer outra perturbação mental complexa, a não ser que conhecêssemos a seqüência completa do genoma humano. Minha esperança então, como agora, foi que a pesquisa sobre o genoma pudesse ajudar Rufus e outros como ele.

Ainda não chegamos lá, mas estou trabalhando arduamente para me certificar de que logo seremos capazes de fazer alguma coisa. Para mim e para vocês, a promessa da seqüência individual do genoma humano deixou de ser algo que está no domínio da ficção científica.


*James D. Watson é um dos pioneiros no estudo da genética humana. Durante quase 40 anos comandou o Cold Spring Harbor Laboratory, em Nova York. Em 1953, ele e Francis Crick identificaram a estrutura do DNA. Foram laureados com o Prêmio Nobel de Medicina em 1962. É autor, entre outros, do recém-lançado Avoiding Boring People: Lessons from a Life in Science
fonte: O ESTADO DE sÃO Paulo

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