quarta-feira, 25 de junho de 2008

A fronteira final



Para cada espécie conhecida na natureza existem
nove outras ainda a ser descobertas. Destruí-las
é queimar um tesouro sem saber seu valor

O assunto meio ambiente desperta preocupação em todo o planeta faz já uns trinta anos, período em que sua compreensão científica cresceu muito, alguns problemas foram atacados em vários níveis e outros novos puderam ser detectados. Assim, vale a pena darmos um giro sobre nossa maneira de ver o mundo natural.

A natureza é composta de um vasto conjunto de organismos de espécies bem definidas, variedade essa a que se dá o nome coletivo de diversidade biológica. É um termo novo, cunhado 22 anos atrás, e sua forma abreviada, biodiversidade, foi usada pela primeira vez há apenas quinze anos. Apesar de recente, a expressão foi reconhecida pela Convenção sobre Diversidade Biológica, nascida no encontro mundial da Eco 92. Engloba a diversidade do mundo natural, do gene às espécies e aos ecossistemas. Ainda me lembro de um almoço no fim dos anos 70 com o professor Edward Wilson, da Universidade Harvard, o cientista reconhecidamente mais dedicado ao tema na época. Falávamos do assunto com desenvoltura, mas não tínhamos um nome específico para definir esse universo das coisas vivas.

Nossa compreensão do que é diversidade biológica mudou dramaticamente nas últimas décadas. Em meus tempos de estudante, a velha "árvore da vida" que ficava pendurada na sala de aula era formada apenas por dois troncos robustos, um das plantas, outro dos animais, com alguns organismos unicelulares na base. Não é mais assim. Agora, parece um arbusto baixote e esparramado, as plantas e os animais reduzidos a dois raminhos que surgem no lado direito. A maior parte do restante é formada por microrganismos, muitos com apetite e metabolismo estranhos, herdados das condições existentes nos primórdios da história da vida no planeta Terra.

É surpreendente descobrir quão ínfima é a parcela do conhecimento científico sobre a vida na Terra. Os cientistas não sabem dizer de forma conclusiva quantas espécies existem. O total pode ser de 10 milhões. Mas o número de espécies, em algumas avaliações, chegaria a 100 milhões. Desse total, só estão descritas e reconhecidas pela ciência entre 1,5 milhão e 1,8 milhão de espécies. Isso nos leva à espetacular conclusão de que mais de 95% de todos os seres vivos ainda estão por ser descobertos. Qualquer que seja a estimativa que aceitemos sobre o número total de espécies, fica evidente que o desconhecido é muito maior que o conhecido. Soa estranho, mas o processo de catalogação da vida na Terra tem sido até agora lento, árduo, com base não muito sólida. Embora seja assunto de interesse de cada nação do planeta, é também um caso de colaboração internacional. País nenhum tem coleções científicas naturais vastas o suficiente para analisar nem os pesquisadores necessários para o trabalho de campo. A colaboração é seriamente prejudicada quando a preocupação com biopirataria se transforma em bioparanóia.

Uma iniciativa recente e ousada, o ALL Species Project (Projeto TODAS as Espécies), foi realizada para resolver esse grave déficit de conhecimento. É um plano que pretende descrever todas as formas de vida no planeta nos próximos 25 anos. Primeiro, haverá um encontro de cientistas dos países com megadiversidade (o Brasil é o número 1 do mundo nesse aspecto), depois uma conferência em Harvard sobre o assunto. Será uma grande aventura científica e renderá dividendos mais imediatos aos humanos do que levar um homem à Lua. Quando o projeto estiver concluído, entenderemos os delineamentos da vida na Terra e começaremos a perceber quanto ela é importante para nosso dia-a-dia.

Os grandes avanços da ciência e da tecnologia nos últimos tempos podem dar a impressão de que a natureza não é tão importante assim para a humanidade. Na verdade, descobre-se exatamente o contrário ao conhecer melhor o que a natureza faz e pode fazer pelos povos. Por exemplo, a enzima de uma bactéria numa fonte de água termal no parque nacional de Yellowstone, nos Estados Unidos, foi o que tornou possível o Projeto Genoma Humano, com todo o seu inestimável valor para a compreensão do bem-estar, da produtividade e da saúde humana. Um novo grupo de compostos provenientes de uma obscura reunião de organismos conhecida como slime molds, ou limo de mofo, é o primeiro a mostrar eficiência no controle de certos tipos de câncer resistentes ao taxol. Este último é uma molécula do teixo do Pacífico, árvore canadense considerada lixo pela indústria de madeira.

A biodiversidade não proporciona apenas bens valiosos como essas moléculas, mas também serve de biblioteca fundamental para as ciências naturais. A história da ciência é pontilhada de exemplos – como antibióticos e vacinas – de enormes avanços baseados em observações casuais de organismos até então pouco conhecidos, como o mofo Penicillium, no primeiro caso, e o vírus da varíola bovina, o Vaccinia, no segundo. Os inibidores de ataques cardíacos usados por dezenas de milhões de pessoas em todo o mundo para controlar a hipertensão nasceram do estudo de uma cobra venenosa no Instituto Butantan.

A natureza contribui para o bem-estar humano por meio de vários tipos de serviços prestados pelos ecossistemas. A preservação de ecossistemas das bacias hídricas é um poderoso aliado na manutenção da qualidade da água. A administração da cidade de Nova York percebeu que recuperar o meio ambiente e a vida natural nas áreas de suas fontes custaria apenas 10% do valor necessário para construir estações de tratamento da água nas regiões degradadas. O ex-prefeito de Quito Roque Sevilla chama as florestas de "fábricas de água". Os serviços prestados pelos ecossistemas incluem a prevenção de desastres. A China baniu a extração de madeira e iniciou um processo de reflorestamento apenas com o objetivo de conter as enchentes devastadoras. "Desastre natural" é muitas vezes o nome errado de acontecimento em parte ou de todo provocado pelo homem.

Estima-se que os serviços prestados pelos ecossistemas tenham um valor econômico global de 33 trilhões de dólares por ano – mais que o produto mundial econômico bruto. Não é à toa que levam o assunto a sério – embora ainda não o suficiente – os governos de vários países e agências internacionais como o Banco Mundial (cujo vice-presidente para a América Latina e o Caribe me mandou uma carta, em 1985, agradecendo por tê-lo iniciado no assunto).

A natureza está sob ataque. As florestas encolhem. A maioria das regiões pesqueiras está esgotada e superexplorada. Os Estados Unidos viram desaparecer a maior parte de suas pradarias, áreas convertidas em terras para a agricultura e que a cada ano sofrem perdas terríveis de camadas de solo. Os rejeitos agrícolas levados pelo Rio Mississippi criaram uma enorme zona morta anóxica no Golfo do México.

A Amazônia brasileira, que na época de minha primeira visita, em 1965, tinha 2 milhões de habitantes e uma única estrada, agora tem 20 milhões de habitantes, várias rodovias e taxa de desmatamento anual em torno de 1,5 milhão de hectares. Em 1997, o uso indiscriminado do fogo, técnicas agrícolas erradas e um ano extremamente seco sob o efeito El Niño produziram uma nuvem de fumaça do tamanho do Brasil inteiro. Na Mata Atlântica, o processo está muito mais avançado – menos de 10% da cobertura florestal original ainda existe, e é uma das 25 áreas internacionais de risco da diversidade biológica.

A melhor maneira de avaliar o grau de depredação do planeta é a taxa de extinção de espécies. A biodiversidade é a "soma final" do planeta; integra todas as formas pelas quais afetamos o meio ambiente. Extinção é um fenômeno natural, faz parte da evolução, no ritmo em que novas espécies expulsam outras mais antigas. A maioria dos cientistas acredita que elevamos esse ritmo a um ponto 1 000 vezes mais alto que o normal. Outra medida é o número de espécies em extinção: aves (12%), mamíferos (18%), peixes (5%) e plantas de floração (8%). A conclusão é uma só: a natureza está com graves problemas.

Não quer dizer que nada seja feito para resolver essa situação. O Brasil, por exemplo, tomou muitas providências. Um dos avanços é incentivar a criação de áreas privadas de proteção, ao lado das áreas públicas. Trabalha-se para ligar num corredor fragmentos que sobraram da Mata Atlântica. Corredores ecológicos também são planejados na Amazônia. Alguns Estados amazônicos começam a eleger administradores que compreendem que o futuro dependerá da floresta. A soma total da área sob proteção na região amazônica, envolvendo parques, estações ecológicas, reservas extrativistas (um conceito que o Brasil deu ao mundo) e áreas indígenas, passará de 40% quando se completar o projeto de acrescer 10% de área rigorosamente protegida.

Um grande desafio que todos os países enfrentam, e não apenas o Brasil, é obter uma abordagem de desenvolvimento sustentável integrada por todos os setores. Por exemplo, assim como gera a zona morta no Golfo do México, a agricultura tem sido um fator de desmatamento na Amazônia. Só recentemente os estudos de impacto ambiental de projetos de infra-estrutura começaram a ir além da avaliação de efeitos físicos imediatos para englobar também efeitos derivados. A possibilidade de algumas obras do projeto Avança Brasil levarem à destruição da Floresta Amazônica provocou grande controvérsia dois anos atrás. O caso precisa serenar antes que o projeto possa prosseguir.

Outra necessidade crítica é considerar o desenvolvimento dentro de todo um sistema ambiental vasto, como o Pantanal ou a bacia amazônica inteira. Os problemas ambientais freqüentemente se instalam sem chamar a atenção, crescendo aos poucos, cada aumento parecendo coisa razoável a seu tempo e em seu contexto. No entanto, o agregado é desastroso. Cinqüenta anos de decisões sobre o uso da água provocaram o caos no ecossistema do sul da Flórida, exigindo um esforço multibilionário para restaurar o esgotamento natural. O presidente Fernando Henrique Cardoso tomou conhecimento de que a Amazônia pode ser afetada como um todo de maneira similar ao que ocorreu na Flórida se o desenvolvimento da região prosseguir isoladamente em cada um dos países do Tratado de Cooperação Amazônica.

A mesma abordagem deve ser adotada com relação ao sistema climático do globo. O efeito estufa terá conseqüências catastróficas sobre a natureza à medida que os organismos tentarem dispersar-se em busca das condições climáticas necessárias, em ambientes altamente fragmentados. Daí, malgrado cada julgamento sobre o Protocolo de Kioto em si – cujos objetivos são na verdade modestos ante o que precisa ser feito –, as nações precisam trabalhar para reduzir suas emissões poluentes. Quanto mais se adiarem as mudanças na política de energia – e, na minha opinião, os Estados Unidos têm uma grande obrigação de tratar disso –, mais dispendioso será mudar e maiores serão as conseqüências para a natureza e as populações.

A situação grave em que está o mundo natural é problema dos mais difíceis e resistentes. É assunto para todas as nações e exige tanto iniciativas nacionais como colaboração internacional. O desafio também é totalmente ligado à condição em que as pessoas vivem, envolvendo a pobreza e a desigualdade. Vai requerer grandes lideranças, vontade política e compreensão pública. Contato com a natureza e experiência viva serão ingredientes essenciais. Nos Estados Unidos, uma das reações aos ataques de 11 de setembro de 2001 foi o grande aumento na visitação aos parques nacionais. O poder de cura da natureza em tempos conturbados é outra forma de mostrar que ela é nosso recurso final.



Thomas Lovejoy foi consultor do Banco Mundial, do Instituto
Smithsonian e é presidente do Centro H. John Heinz III
para Ciência, Economia e Meio Ambiente

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